E cá estamos. ‘The Batman’ chega aos cinemas, depois de uma série de modificações, rumores, teorias e incertezas que rondavam essa nova adaptação e visão do Homem-Morcego. Matt Reeves dá conta de dirigir um filme do Batman? Principalmente, Robert Pattinson dá conta de ser o Bruce Wayne e seu alter ego mascarado? O que diferencia esse filme dos anteriores?
Eu poderia encher um pouco de linguiça e responder ponto por ponto, mas antecipo que o filme atende — e até supera, de certo modo — as expectativas da audiência. Eu não sei com qual bagagem você está indo assistir ‘The Batman’, mas não é necessário conhecer mais que os elementos padrões do herói de Gotham para entender onde Matt Reeves quis chegar, ou para aproveitar o filme como um todo.
Não existem multiversos ou uma extensa lista de filmes para tornar a experiência aconchegante, o que torna a tarefa de entregar um filme consistente menos difícil. Mas mesmo ali, em seu universo contido, o diretor consegue entregar uma das melhores experiências recentes se tratando do Batman, da DC e do cinema de super-herói como um todo.
O texto abaixo contém spoilers.
A Gotham de ‘The Batman’
Começando do começo: a Gotham City de Matt Reeves é magnífica. Se materializando com vários fatores tecnológicos contemporâneos e ao mesmo tempo oferecendo uma cidade suja, o visual da terra do Batman traz aos holofotes aquela Gotham completamente corrompida e corrupta, mas ao mesmo tempo cínica demais para admitir isso nos autos, deixando ao lado oficial a imagem da ética e da moral completamente impecáveis.
Aqui, Thomas Wayne foi um prefeito responsável por uma das mais notórias políticas públicas da cidade de Gotham nas últimas décadas: a política da renovação, que supostamente cai em mãos erradas após sua fatídica morte, que mudaria a vida de seu filho e protagonista do longa, Bruce Wayne.
Embora a morte não ocorra em trama, as traumas na psiquê do jovem Bruce são expressivas. Não há um momento que o filme te faça esquecer como cada uma daquelas feridas fazem o Batman ser quem é.
Sua luta, sua insistência, seu motor é Thomas e Martha, e os primeiros 20 minutos deixam claro que os limites éticos do Homem-Morcego são amplos.
Não se preocupe, as regrinhas que o Cavaleiro das Trevas adquiriu ao longo dos anos no imaginário popular permanecem aqui, mas tudo é levado ao limite em vários momentos. E o “levar ao limite” é o que torna o Batman de Pattinson tão trágico, mas ao mesmo tempo tão crível. Se Nolan idealizou um Batman realista, Reeves executa.
O filme faz você comprar a ideia de plausibilidade de um lunático como esse Bruce Wayne utilizar a sua grande quantia de dinheiro para materializar suas mazelas da alma em um alter ego de morcego mascarado feito para combater o crime pela noite. Por mais insano que seja, é crível.
E no meio de tudo isso, o personagem se alia ao Comissário Gordon (ali ainda sem ser Comissário) em uma dinâmica que no máximo Christopher Nolan trouxe anteriormente. O personagem é fundamental para que o próprio Batman entenda seu valor, é até curioso a conexão dos dois mesmo com o herói em início de carreira. O que me decepcionou, todavia, foi a presença (ou a falta dela) de Alfred. A versão de Andy Serkis acaba sendo menos fundamental ao patrão Bruce do que em versões anteriores do herói nos cinemas, embora seja argumentável que isso se deve ao quanto o filme explora menos de Bruce Wayne e mais de Batman. No entanto, pessoalmente, ‘The Batman’ falhou em trazer pouco.
Bat and Cat
Por fim, antes dos vilões, destaco a Mulher-Gato de Zoe Kravitz. Selvagem, discreta, ágil, minuciosa e sexy são alguns dos vários adjetivos que lhe podem ser dados. A Selina Kyle de Matt Reeves entrega uma química que o Batman quase não viu nos cinemas, seja com seus pares românticos de maneira geral ou com as versões da personagem apresentadas em 1992 e 2012.
Sua subtrama com relação ao pai, ninguém menos que Carmine Falcone, também traz uma boa dose de tensão e profundidade à personagem, que raramente passou de um mero interesse amoroso do Homem-Morcego. Aliás, tão fundamental quanto Penguim ou Charada, Carmine Falcone guia muito da jornada de detetive que o filme adota, seja pelo seu império do crime, ou até pelas poucas e boas brigas que comprou em nome de Thomas Wayne, mas comentamos isso mais tarde.
Agora que falamos do lado investigativo, se torna uma faceta bem iluminada de Bruce Wayne. O que retroalimenta esse lado, no entanto, é Charada. Mas algo fundamental que diferencie a forma com que os vilões dão suas cartas em ‘The Batman’ ou em outro filme do herói: se o próprio Batman ou Bruce Wayne já foram sobrepostos em suas próprias histórias, aqui eles tomam o protagonismo para si.
Sim, os vilões (o vilão, para ser mais exato) conduzem a história, mas quem a protagoniza é Robert Pattinson. E como protagoniza! O astro se entrega de corpo e alma não só para o Bruce detetive, mas para todo esse fator citado no começo de feridas abertas, de ressentimentos.
O Maestro
O Charada de Paul Dano é como um maestro, conduz a história através dos bastidores. E dando o devido crédito: que atuação, que texto! O personagem foi finalmente abordado com a profundidade que merece. Não que eu tenha desavença com a versão de Jim Carrey, mas acho que o Charada merece o crédito dado pela versão de Matt Reeves. Ambicioso e aparelhado por uma Gotham hierarquizada pela elite, a cidade gera essas figuras pitorescas.
Antes de chegar ao seu ponto principal, destaco o artifício de utilizá-lo como forma de discutir o próprio Batman enquanto persona: chame de politização, mas é de bom tom pontuar que o Batman só pode existir mediante ao seu contexto de criação, ao contexto de criação de Bruce Wayne. Avesso à opressão, avesso à vivência da barbarie, o que resta ao Cavaleiro das Trevas é engrossar a voz e usar o pobre como saco de pancada, enquanto mantém a manutenção de um sistema que privilegia a elite que ele próprio faz parte. Não mata pois precisa se massagear com alguma ética. O filme não vai fundo na ferida, mas se permite aflorar um debate que nunca foi pensado no Batman dos cinemas, um feito e tanto para um vilão e tanto.
Vale o destaque para o Pinguim de Colin Farrell. Inicialmente tímido na trama, o personagem rende algumas das melhores cenas de ação do filme, que não ficam para trás em nada com até o melhor dos filmes do Batman, ‘O Cavaleiro das Trevas’, reproduzindo com exatidão o que o espectador espera de coreografia, ambientação e jogo de câmera. Porém, lá pelo fim, o filme lhe dá o potencial adequado para ser o próprio Wilson Fisk particular de Gotham. Fico curioso sobre seu spin-off.
A decisão controversa de ‘The Batman’
Voltando ao Charada, com ele temos a revelação de um fator importante acerca de Thomas Wayne: a apresentação de um prefeito não só falho, mas corrupto. O vilão traz ao povo de Gotham a história apagada acerca de um jornalista morto por querer revelar os problemas psicológicos de Martha Wayne. A ideia de Waynes corrompidos sempre me pareceu sensata de um ponto de vista mais realista, em especial pelo poder exercido pelos pais de Bruce. Minha crítica vai, no entanto, para como o filme utiliza dos diálogos para suavizar o fato por si só.
A apelação de Thomas Wayne para alguém ligado com o mundo do crime de Gotham em relação ao ato de aterrorizar um jornalista por expor sua vida pessoal é um traço esperado de alguém com tanta influência, mas é o suficiente para desmotivar Bruce enquanto pessoa. Seu ídolo não só falhou, mas cruzou uma barreira. E ao invés de levar isso em frente e enfim colocar a identidade mascarada de Bruce Wayne em jogo, ‘The Batman’ traz uma série de eufemismos para a situação e “estanca a sangria” rapidamente. Triste.
Mas voltando ao enredo: sua grande ameaça final se dá por atentado organizado por Charada durante a comemoração dos resultados das eleições municipais de Gotham City, que ocorrem no Gotham Square Garden. Dos dilemas da água até a pura porradaria que ocorre ali, tudo transforma aquele trecho em algo icônico para o Batman no cinema. A tensão e ação são bem dosadas. E o final contém três lementos interessantíssimos: a ascensão de Pinguim em meio à crise, o emocionante desfecho da dupla Batman e Mulher-Gato que se materializa literalmente em ambos seguindo caminhos diferentes, e a aparição final de um certo vilão.
Sim, os rumores estavam certos: Barry Keoghan viverá o Coringa. Sua aparição é contida, mas suficientemente instigante para uma possível sequência de ‘The Batman’. Não há fã do Homem-Morcego que não se animou com o mistério gerado pela cena, sensacional!
E por fim, Bruce nota que seu alter ego deixa de ser um simbolismo de vingança, e passa a ser a esperança de Gotham City. O apelido ‘Vengeance’ não mais o representa, um simples ‘Batman’ está de bom tamanho. E é essa simplicidade que cabe bem ao título, pois é isso que ele de fato se torna, e é isso que torna essa versão tão prazerosa de se testemunhar.
Conclusão: ‘The Batman’ acerta em cheio. A versão definitiva do herói nos cinemas, Robert Pattinson adapta perfeitamente os males que atormentam a alma de um herói tão quebrado quanto o Batman, e tão crível nessa versão. Seguindo a direção de um filme de detetive noir, a execução é quase integralmente redonda e o apanhado de cenas de ação são de cair o queixo. Com exceção de Tim Burton, Gotham nunca foi tão bem retratada, ainda que a versão de Reeves apresenta um outro olhar profundamente mais realista e crível. Charada traz a tensão necessária para um filme do gênero funcionar, mas a Mulher-Gato de Zoe Kravitz e o Pinguim de Colin Farrell merecem destaque. É o melhor filme de toda a franquia.
Nota: 9,5/10